Por vezes durante a prestação de cuidados a doentes dependentes, posso observar uma lágrima no canto do olho, ouvir um gemido, por vezes é esse o máximo que eles conseguem expressar. Tiro as luvas e acaricio a face, ou pego a mão abandonada nos lençóis.
Foi à três anos atrás que tudo começou.
O meu primeiro contacto não foi dos mais felizes, iniciei a observação num serviço de cuidados continuados, e cuidados fim de vida.
Sim impressionei-me com o estado de alguns doentes, fiquei enjoada com o cheiro de feridas infectadas. Não almocei no primeiro dia pois ainda sentia o cheiro entranhado nas minhas narinas, sentia-me nauseada.
No segundo ano, tive o meu primeiro confronto indirecto com a morte. Apesar de saber de alguns doentes que haviam falecido, não os acompanhei tanto, e sabia que muito provavelmente não iriam sobreviver devido ao seu estado deteriorado pela doença. Mas um doente, que acompanhei, recebi na consulta externa, encaminhei para o internamento, observei a cirurgia, conheci a família. No dia esperado da alta, o doente fez levante, e sentiu-se mal. Após reanimação e entubação, estabilizou-se o doente e transferiu-se para o bloco central. A família estava animada por finalmente o doente ter alta, e esta mudança radical fez com que a família entrasse em discordância, e ficasse extremamente nervosa.
No dia seguinte o doente faleceu.
Como lidei com a situação, já não me lembro, andei uma semana abananada. Extremamente sensível à insensibilidade dos outros.
Terceiro ano, contacto directo com a morte. Durante a prestação de cuidados à ferida no domícilio, o doente faleceu. Realizada massagem cardíaca, 10 minutos ininterruptos. Não obtivemos reacção do doente. Era um doente idoso, mais fácil de aceitar. Ao prolongar-mos a vida dele aumentávamos o seu sofrimento e o sofrimento da família, uma vez que o conjugue do doente sofria de doença degenerativa, que também causava muito transtorno à família.
Durante este ano pude também observar o lado mais belo de enfermagem, e assistir a momentos felizes e mágicos.
Quarto e ultimo ano, tenho que me distanciar. Eu posso sorrir e estar feliz enquanto presto cuidados a um doente idoso, que está com estado reservado e muito dependente. Esse doente tem família que está a sofrer, tal como eu sofro quando a minha família não está bem.
Mas eu sou pessoa, tenho vida além do que escolhi como carreira. E diariamente morrem doentes. Morrem pessoas com quem conversei, com quem por vezes partilhei uma gargalhada, a quem fiz uma carícia, a quem com voz suave e calma pedi desculpa pelo procedimento doloroso, mas que é necessário. Morrem crianças, com quem brincámos, e vemos uns pais destroçados. Morrem fetos, e vemos a desilusão na cara da mulher.
E tenho que apoiar a família abalada, os pais desgostosos, a mulher inconsolável.
E tenho que lidar com a minha vida.
Mas a nossa família não sabe, não conhece. Por vezes, apesar de não ser a melhor estratégia, quando me perguntam como correu o dia, apenas explico os procedimentos realizados, quando me perguntam se faço alguma coisa, brinco com algumas situações.
Pensar que qualquer um não está livre da doença, de um acidente ocasional que nos pode mudar a vida, que todos nós somos frágeis mortais.
E hoje sou eu que limpo a lágrima e acarinho.
E posso ser eu a ter uma lágrima no canto do olho, e soltar um gemido.
Será que algum dia estarei preparada?
Serei capaz de separar os meus sentimentos do sofrimento e ou alegria dos outros?
Serei capaz de me melhorar?
Escolheste uma profissão complicada de lidar, mas acho que tens feito um bom trabalho ;)
ResponderEliminarSó não tenhas medo de quebrar de vez em quando... E vai continuando a ver o lado bom de cada dia :P
Isto de vez em quando tenho de parar e olhar para o q estou a fazer pa me orientar =)
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